2 de nov. de 2010

Nerdcast 232 - Monstros

Este post é escrito especificamente para os que ouviram o Nerdcast 232 e 233. Se você chegou aqui por algum motivo e não os ouviu vá aqui e aqui - e depois retorne. 
  
Ouvindo a leitura de e-mails do Nerdcast 233 - me incomodou a dificuldade do JN e do Azaghal em definir o conceito de monstro - justamente que havia sido o tema do Nerdcast anterior- "Dragões, monstros e o impronunciável Cthulhu". Este post é uma tentativa de colocar alguma luz sobre este conceito - que é, por sua própria natureza, refratário a esta iniciativa. 

Definido o que é "monstro":

O conceito de " monstro" deriva de três noções básicas que se articulam:

(1) Existe uma Ordem no mundo;
(2) Esta Ordem não é perfeita - e, ocasionalmente, falha;
(3) Quando esta Ordem falha - aí, neste vão, neste espaço, surgem os monstros.

(Poder-se-ia argumentar aqui que a falha na Ordem é - por si só - um Ordem em si mesma  - mas não vamos entrar neste debate - por demais filosófico para este Blog.)

Estes três conceitos ficam fáceis de se entender a partir da contemplação do quadro de Goya (ao lado), intitulado "O Sono da Razão Produz Monstros". A razão, aqui, não é a razão humana - mas a razão na Natureza - o princípio de Ordem  e razão presente na Natureza.

Como base nestes três pressupostos o monstro - seja ele qual for - é sempre exceção e sempre um desvio da Ordem natural das coisas - é sempre algo que não deveria existir. Muitas vezes, também, os monstros se localizam/originam de lugares ermos ou inacessíveis - o que serve para representar fisica e geograficamentemente o seu caráter de exceção. O monstro, além disso, tipicamente se propaga - quando tal ocorre, de forma não-biológica e não-natural - ou possui uma duração indefinida, o que o exime da necessidade de reprodução. 


Respondendo às dúvidas do Nerdcast:

Desta forma, usando a lista dada pelo próprio Nerdcast (leitura de e-mails do 233) como exemplo:
 
Gremlins (os do filme de mesmo nome) são monstros.
Lobisomens - como em The Wolfman (2009) - são monstros. Lobisomens - como em Anjos da Noite (2003) - não são.
Drácula - de Lugosi, de Lee ou como em Bram Stoker´s Dracula (1992), por exemplo - é um monstro.
A Múmia - como no clássico de 1932, The Mummy bem como na versão-pipoca de 1999 com  Brendan Fraser - é um monstro.
Frankenstein - de Karloff, por exemplo, mas também o Mary Shelley's Frankenstein (1994) - também é.
Zumbis sobrenaturais são monstros. Zumbis científicos não são.
O caminhão de Encurralado e o Tubarão - de Jaws - não são monstros
Freddy Krueger é um monstro (como não?). 

Detalhando: 

Gremlins: tanto na sua forma Mogwai quanto na forma réptil - são monstros, porque: (1) existem em caráter de exceção (quem lembra bem do primeiro filme de 1984, nã ovai deixar de perceber que o Mogwai é tratado como um "animal" raro/exótico); (2) se reproduzem de forma não-biológica (quantos animais você conhece que se multiplicam ao se adicionar água?). 
Lobisomens: os Lobisomens do filme recente (e belíssimo) The Wolfman (2009) são seres de exceção - que só existem em um local (vilarejo) remoto, etc. - e  se propagam de forma, evidentemente, não-natural. 
os Lobisomens (e também os Vampiros)  vistos em Anjos da Noite (2003) e que se constituem em uma verdadeira comunidade de existência paralela à da Humanidade não são monstros - são, no máximo, um espécie diferente da humana, com peculiaridades próprias. 
Drácula: o Drácula do livro de Bram Stoker é de fato o monstro por excelência: existe em caráter de exceção (não há menção a outros vampiros no livro - tirando, evidentemente, as "noivas") e em lugar remoto não-sujeito às leis da civilização (algum lugar dos Cárpatos,  "esta terra onde o diabo ainda caminha com pés humanos", como o infeliz Johnatan Harker escreve em seu diário). Menções no Cinema - e posteriormente nas séries de TV - a toda uma raça de vampiros existindo em paralelo à humana são invenções muito, muito recentes.
A Múmia: contanto no no clássico de 1932 - com Karloff - bem como nos  dois primeiros filmes da Trilogia recente com  Brendan Fraser, a Múmia é encarada como um caráter de exceção. No  primeiro filme (1999), inclusive, é claramente colocado que o simples fato da Múmia ter retornado à vida é algo tão grave, tão sério, que desafia de tal maneira a ordem natural das coisas que o mundo começa a experimentar os sinais do Apocalipse. - ou seja, de ruptura iminente da Ordem. (No segundo filme isto é abertamente esquecido: e vemos a Múmia em forma plenamente humana andando pra lá e pra cá sem que nada de mais aconteça). 
Frankenstein: o simples fato de as pessoas se referirem ao monstro de Frankenstein já seria algum indicativo do seu caráter monstruoso. Aqui há algo interessante: no livro de Mary Shelley, a criatura chantageia o seu criador para que lhe construa uma companheira - esta também feita de pedaços de cadáveres. O plano do monstro - se não me falha a memória - é tomar a sua companheira e seguir para algum lugar ermo onde viveriam happily ever after. Não haveria nenhum impedimento - até onde eu imagino - de o  monstro de Frankenstein meramente raptar uma humana qualquer e seguir no seu intento - mas este quer que seja alguém igual a ele - e que partilhe do mesmo caráter de exceção em relação à Humanidade.
Zumbis: os zumbis sobrenaturais são monstros porquê representam uma violação da ordem natural ("Quando não houver mais espaço no Inferno os mortos caminharão pela Terra"): Já os zumbis científicos não são monstros: são, no máximo, pessoas doentes. Isto suscita um dilema ético importante pois, a qualquer momento, poderia surgir uma cura que os revertesse à normalidade. Eu, por mim, sou á favor da volta aos zumbis tipo Romero.
O caminhão de Encurralado: não é um monstro propriamente dito - pois não partilha de nenhuma carcterística "monstruosa" - mas foi tratado no fime como um monstro - como o JN bem ressaltou.
Tubarão: esse é realmente difícil. É fácil perceber que King Kong e Godzilla são monstros, mas o Tubarão (de Jaws) é complicado. Embora este também tenha sido tratado de forma algo monstruosa no filme - do mesmo Spielberg - um tubarão é um tubarão - e, verdade seja dita, o número de vítimas humanas fatais por ataque de tubarão é insignificante perto do que nõs como espécie fazemos com os tubarões todos os anos (são milhões de mortos). Neste caso, nós somos os monstros!
Freddy Krueger: quem lembra bem dos primeiros filmes de A Nightmare on Elm Street (e o título já diz tudo: "Um Pesadelo na Rua Elmo") sabe que a origem de Freddy Krueger está ligada a algo que aconteceu na cidade de Springwood - e sua atividades oníricas estão especificamente relacionadas aos filhos das pessoas responsáveis pela sua morte. Inclusive, se bem me recordo, haveria uma limitação para o alcance de sua atividade - que não se extendia além dos limites da cidade,  pelo menos em alguns dos filmes. (A mesma coisa ocorre com Jason Voorhees que - pelo menos nos primeiros filmes - tem a sua existência e raio de atuação mais ou menos ligada a Crystal Lake.)

E Cthulhu?

Sobre a discussão de Cthulhu ser monstro ou alienígena esta é uma questão de díficil resolução - e muito provavelmente assim o é porquê Lovecraft nos quis deixar mesmo na dúvida. Embora, por um lado, Cthulhu pertença a uma espécie (embora de origem "nas estrelas") bem definida - que teria reinado na Terra antes da Vida como a conhecemos ter evoluído - por outro lado, ele e os da sua espécie não existem exatamente no mesmo contínuo espaço-tempo que a espécie humana - eles existem "no espaço entre os mundos" - ou seja, nos intervalos na Ordem. 

Na mitologia Lovecraftiana, a existência da espécie humana é tão mais episódica, é tão mais acidental, tão mais fortuita e frágil que todo o restante do Universo que - dentro desta mitologia, o ser humano - em toda a duração de sua espécie na Terra - é, na verdade, o  verdadeiro monstro. Assim, quando se diz que Cthulhu dorme e que, quando este acordar a espécie humana terá fim, podemos claramente perceber que - nesta visão Lovecraftiana - Cthulhu é o sonhador do quadro de Goya - e a espécie humana são os seres que só existem enquanto este se encontra adormecido.

Respondido, Azaghal? =)

13 comentários:

  1. Na parte que diz que KIng Kong é monstro eu não concordo; considero ele um gigante e não monstro pois ele é um gorila gigante, simples.
    Sobre monstros Brasileiros esqueceram de falar do BLANKA de Street Fighter.
    Muito bom ter onde comentar.
    A braços a todos

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  2. Muito interessante o texto!

    Nunca tinha pensado nessas definições de monstro... na verdade ainda não tive tempo de ouvir o nerdcast sobre eles!

    Gostei muito do texto e concordo com tudo o que disse. Muito bom!

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  3. Um adendo o primeiro filme da Múmia do Brandon Fraser é de 1999

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  4. O King Kong, um gorila gigante, é um monstro, e o Tubarão de jaws, que é um tubarão gigante assassino, não é? Não entendi a lógica.

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  5. Prezados, Olá!

    Obrigado pelo comentários!
    Renver: obrigado pelo adendo! Já corrigido! Tinha colocado 99 em cima e 92 embaixo. Valeu!

    As considerações sobre King Kong são muito válidas. Vou traçar aqui algumas idéias tomando por base os comentários feitos, lembrando apenas que devemos sempre levar em conta a estrutura narrativa da história na qual o candidato a monstro está inserido, OK? Vamos lá!

    Como vimos no texto, Monstros são:
    - exceções/anomalias.
    - muitas vezes localizados/originados em lugares ermos/inacessíveis.
    - seres que se propagam - quando tal ocorre - de forma não-biológica e não-natural (e/ou possui uma duração indefinida).

    King Kong:

    - é uma exceção/anomalia. (Confere!)
    Tudo bem, ele mora numa Ilha onde existem dinossauros mas...

    (1) gorilas são evolucionariamente muito, muito posteriores a dinossauros. O fato de existirem dinossauros na Ilha só o torna mais aberrante - e não explica o que um gorila gigante está fazendo ali.
    (2) nunca existiram gorilas gigantes (cientificamente comprovados, pelo menos);
    (3) não existem evidências de outros gorilas habitando a Ilha - pelo menos nos filmes clássicos (1933, 1976, 2005). (Vamos esquecer a versão com Linda Hamilton.)

    - é localizado/originado de um lugar ermo/inacessível? (Confere!)

    No filme de 1976 tinha um detalhe muito interessante - mas meio gratuito - de uma névoa que circundava a Ilha e dificultava a aproximação. Isso reforça ainda mais o conceito de isolamento da Ilha.

    - se propaga - quando tal ocorre - de forma não-biológica e não-natural (e/ou possui uma duração indefinida)? (Essa vocês decidem!)

    Porquê uma mulher é oferecida a Kong pelos nativos? Me parece que é uma tentativa de canalizar os instintos reprodutivos não passíveis de outra forma de expressão, uma vez que - tudo indica - não há outros gorilas gigantes na Ilha. Pra mim não tem nada de mais não-natural do que isto! (rsrsrsrs)

    A não existência de outros gorilas na Ilha levanta tb uma outra questão: como (e quando) Kong surgiu? Esta é uma pergunta interessante: na versão de Peter Jackson, há uma cena que se vê um sem número de cicatrizes sob o pelo de Kong. Quantos anos será que ele tem?

    Resumindo: duas de três (pelo menos)
    Veredicto: Monstro!

    Vamos ao Tubarão (de Jaws, 1975):

    - é uma exceção/anomalia? (O Tubarão do filme tem um tamanho factível para um Tubarão branco, então, no quesito tamanho, a resposta é não! Poderíamos aqui postular que o comportamento do Tubarão em si poderia ser anômalo: se for assim, o leões de "A Sombra e a Escuridão" e TODOS os serial killers de filme são candidatos a monstros)
    - é localizado/originado de um lugar ermo/inacessível? (Não há indicativo no filme, então não!)
    - se propaga - quando tal ocorre - de forma não-biológica e não-natural? (Não há indicativo no filme, OK?)

    Resumindo: zero de três para o Tubarão!
    Veredicto: Não-Monstro!

    No que se refere a Kong existem algumas nuances de acordo com cada filme. Para mim ele é bem mais Monstro no filme do Peter Jackson - seguido pelo filme de 1933. No filme de 1976 - o pior dos três, na minha opinião - é quando ele está mais próximo de ser apenas um gorila gigante.

    Super abraço a todos!

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  6. Lí Frankenstein há dois meses.
    A história é essa mesmo.

    Muito bom o post!

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  7. Vou copiar um comentário de um colunista que fala da origem das palavras, para demonstra a dificuldade de descrever a plavra monstro, segue:
    Monstro - Do latim, monstrum = monstro. Essa é uma palavra rica de sentidos e que sofreu transformação na sua história. Ela é formada a partir do verbo latino, "monere" = advertir, chamar atenção. Seu primeiro sentido foi positivo, tanto que Petrarca *1304+1374, louvando a sua amada Laura, em "Rimas", diz: "O delle donne altero e raro mostro" = Entre as mulheres era um raro monstro, isto é "de rara beleza", que chamava atenção. A palavra, depois da Idade Média, perdeu o sentido de belo (a), magnífico (a) e passou a significar: horroroso, temeroso, pavoroso. E esse não é caso único, eu tenho uma relação de mais de 50 palavras que mudaram de sentido que estou apresentando no meu blog: hermínio-bezerra.blogspot.com Ing. Monster. Esp. Monstruo. Fr. Monstre. It. Mostro. Al. Missgeburt, Missgestalt f.

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  8. Prezados, Olá!

    Obrigado pelos comentários!

    Whermeson, obrigado pelo adendo. Se me permite, dentro deste ponto-de-vista etimológico, a origem de "Monstro" me lembra, particularmente, a origem da palavra "Milagre" - que também tem o sentido de "coisa admirável", ou seja, que se "mira" "à distância" (ad-mirari).
    "Monstro" e "Milagre", portanto, são próximos de certa forma - embora se situem em extremos opostos no espectro. Ambos, no entanto, partilham do conceito de coisa excepcional - muito embora um se deva a uma "fraqueza" ou interrupção da Ordem constituída e o outro pela suspensão temporária da Ordem pela intervenção de uma Ordem de natureza superior.

    Visitei o seu Blog e gostei: muito jóia!

    Super abraços a todos!

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  9. Muito bom o post, parabéns!

    Uma coisa que percebi que não foi citado quando falaram dos dragões, é algo até bem óbvio, que os dragões( não os chineses ) simbolizam a avareza, cobiça, etc.

    Inclusive na lenda nórdica de Sieggfried, pelo menos em uma versão que eu li, Fafnir, um anão que assassina o proprio irmão para se apossar de um tesouro e se esconde com o tesouro em uma caverna, assim acaba se transformando em um dragão com o passar do tempo.

    Acho interessante o conceito do Dragão que guarda um tesouro, é o mais puro retrato da avareza, alguem que guarda ferozmente tudo aquilo que tem, mas que não usa para nada...tem apenas por ter. Todos conhecemos muita gente que é assim, aposto.

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  10. Prezados, Olá!

    Obrigado pelos comentários!

    Maus: Obrigado pelo adendo! Realmente, dito de forma bem geral, os Dragões Ocidentais representam a avareza e os Orientais são Sábios. Mas - só pra contrariar a regra - o Granamir do He-man é um Dragão Ocidental sábio e Fin Fang Foom, das histórias do Homem de Ferro, é um Dragão Oriental avarento (vamos propositadamente esquecer a origem alienígena que inventaram depois para este vilão, OK?).

    Se vc quiser entender mais como os dois conceitos estão ligados, recomendo o livro Ferreiros e Alquimistas de Mircea Eliade - tu deve achar pelos sebos de tua cidade. Jung escreveu bastante a respeito também, mas está meio disperso pela obra toda (que é bem grande). E se tu realmente se interessar - no nível paixão - do tema, sempre existe Fulcanelli.

    De resto, tem muito Dragão (estilo Ocidental clássico) por aí, isso é verdade! =)

    Abraços!

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  11. Ola.
    Gostei e entendo a explicação, obrigado
    Uma ultima duvida
    Dragão é monstro e dinossauro não certo? Poderia fazer a analise desses dois como vc fez para o King Kong?

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  12. Prezado, Olá!

    Que bom que tu gostou!

    > Dragão é monstro e dinossauro não certo?

    Correto: pelo menos, no geral! O pessoal inventa umas coisas que desafiam a classificação.

    Por exemplo:

    O Dragão de Merlin (a produção da BBC) reúne bem as características de monstro - com certeza! É um Dragão Ocidental "sábio"!
    Já os Dragões de Reign of Fire são meio que dinossauros suficientemente modificados para parecerem com Dragões - ou Dragões suficientemente banalizados para passarem como dinossauros. (De qualquer forma, esse filme é - no geral - bem ruinzinho!)

    Lembrando que dinossauros são a designação genérica de um conjunto de espécies de seres biológicos que habitaram a Terra em um período X - paleontologicamente definido. Alguns dinossauros de fato parecem com algumas representações de Dragões - veja bem, p-a-r-e-c-e-m - mas Dragões não são dinossauros.

    Forte Abraço!

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